Georg Cantor e o álefe-zero: O homem que colocou o
infinito no bolso
Flávio
Dieguez
Desde
que o homem aprendeu a pensar, poucos conceitos perturbaram tanto o seu
espírito quanto o infinito. Um exemplo simples são os números inteiros: 1, 2,
3, 4, 5... e assim por diante. A seqüência nunca termina e não se pode imaginar
um número que seja maior que todos os outros — era o que se pensava até o final
do século XIX. O fato, porém, é que há números ainda maiores, como se além de
um infinito houvesse outros. Esse paradoxo abalou o pensamento matemático e
surpreendeu seu próprio autor, o matemático Georg Cantor (1845-1918). Filho de
dinamarqueses, nascido na Rússia e radicado na Alemanha, sua pátria por adoção,
Cantor era bastante conservador, dizem os historiadores.
Muito
ligado à religião e de boa índole (chegou a matricular-se num curso de engenharia
para satisfazer o pai), não tinha vocação para radical. Num único episódio
fugiu à regra: quando propôs, na juventude, que a Igreja abandonasse o dogma da
imaculada concepção (pelo qual a mãe de Cristo teria engravidado, continuando
virgem). Assim, quando foi atacado por sua descoberta, defendeu-se dizendo
sinceramente que fizera tudo para evitá-lo. “Apenas, não vejo como fugir dela”,
acrescentou. E estava certo. Seu método, claro como água, consistiu em comparar
a lista dos números inteiros com as de outros números. Por exemplo, como os
existentes entre 0 e 1, tais como 0,014828910... ou........... 0,999999273... E
a comparação era feita como quem vistoria uma sala de cinema: se não há
cadeiras vazias e ninguém está de pé, é certo que o número de cadeiras é igual
ao de pessoas. Caso contrário, será maior o número do que sobrar, cadeiras ou
pessoas.
Com
essa idéia em mente, Cantor emparelhou os números inteiros com os números
menores que 1 e constatou: depois de esgotar a lista dos inteiros, ainda havia
menores que 1 a emparelhar. Concluiu que o número desses últimos — apenas entre
0 e 1 — era maior que o infinito número dos inteiros. Nem havia nome para tal
quantidade, e coube a Cantor batizá-la. Chamou de álefe-zero ao conjunto de
todos os inteiros — o “menor” dos infinitos. Vinha depois o álefe-zero mais 1,
e por aí adiante, numa inimaginável hierarquia de infinitos. O mundo ficou
pasmo, mas, como quase sempre acontece, grande parte do problema era simples
falta de costume com uma idéia nova.
E,
depois de assimilados, os métodos cantorianos se mostraram perfeitamente
práticos e muito úteis. Apenas a título de ilustração, eles serviram de base à
recente teoria dos fractais, que representa um notável avanço no conceito de
dimensão. Uma casa tem dimensão 3 porque tem altura, largura e comprimento, e
uma folha tem dimensão 2 porque só tem largura e comprimento. Mas há objetos
difíceis de classificar — como os alvéolos pulmonares. Por serem ramificados
como uma árvore, se diz que sua dimensão é fracionária — alguma coisa entre uma
área e um volume — e é denotada por algum número entre 2 e 3. Isso, por si só,
mostra que Cantor ajudou a ampliar os cálculos que a Matemática é capaz de
fazer.
Ainda
mais importante que esse lado prático, porém, foi uma mudança de fundo na
maneira de ver os números. Curiosamente, o melhor caminho para entender a visão
moderna é relembrar como os números eram usados na Pré-história — e ainda hoje
são usados por pastores nômades que aprenderam a contar com seus ancestrais.
Como não sabem dizer quantos animais têm, os pastores colocam pedrinhas numa
sacola, uma para cada vaca que sai do curral. Assim, sabem que têm tantos
animais quantas pedras há na sacola. Ou seja, quase se pode dizer que a sacola
de pedras é o número — e que esses povos carregam seus números no bolso, em
lugar de decorá-los.
Esse
tosco sistema serve apenas para manter o gado sob controle. Mas é mais ou menos
isso o que a Matemática moderna entende por número: uma espécie de comparação
entre dois conjuntos — o conjunto de pedras e o de vacas, ou de qualquer outra
coisa. É fácil perceber que, para contar os infinitos números entre 0 e 1,
Cantor repetiu o procedimento daqueles pastores: a diferença básica é que, como
pedras, ele usou os números inteiros. Sua sacola era infinita e suas pedras,
abstratas, mas seu objetivo, desde o início, era compreender os números comuns.
Ou, pelo menos, uma categoria rebelde de números comuns.
O
exemplo clássico, conhecido desde a Antigüidade, é a raiz de 2. À primeira
vista, é um número trivial, para todos os efeitos igual a 1,41. O problema é
que 1,41 ao quadrado dá 1,9881 — e não 2, como deveria acontecer se fosse a
raiz procurada. A resposta exata, na verdade, nunca poderia ser escrita, e o
mesmo vale para a maior parte dos números entre 0 e 1 . Pelo simples motivo de
que raiz de 2 tem infinitos algarismos. Existem fórmulas para se calcularem
quantos algarismos se queiram. Por exemplo, com dez casas decimais, o número
seria 1,4142135623. Mesmo assim, seu quadrado é 1,9999999997. Ainda não alcança
o alvo, como se raiz de 2 fosse uma construção eternamente inacabada.
Esse
fato perturbou profundamente os gregos antigos, que conheciam bem as frações, e
muitas delas com infinitos algarismos, como 0,66666666... A diferença é que
esse número pode ser abreviado na forma de uma razão: ele vale exatamente 2/3.
No entanto, não há razão capaz de simbolizar a raiz de 2 e outros números. Daí
porque foram chamados “irracionais”, no século V a.C. (hoje, frações, inteiros
e irracionais são todos englobados num só conjunto, o dos números reais). Não
por acaso, por volta daquela época, o infinito começou a revelar suas arapucas
aos filósofos e matemáticos. Uma das mais ardilosas foi montada pelo sábio
Zenão (c.495-c.430 a.C.), morador da ilha de Eléia, no Mediterrâneo, que
imaginou uma corrida fantástica entre Aquiles, lendário herói da Grécia, e uma
lerda tartaruga.
Zenão
mostrou que, se Aquiles desse uma vantagem à tartaruga, não poderia alcançá-la,
por mais que corresse. O herói poderia ser, por exemplo, duas vezes mais
rápido, e a vantagem, de um quarteirão. Assim, quando Aquiles percorresse o
quarteirão, a tartaruga teria andado mais meio quarteirão. Continuaria à
frente, portanto. Num segundo instante, Aquiles percorreria esse meio
quarteirão, mas a tartaruga já teria avançado mais um quarto de quarteirão. Em
resumo, como o animal é duas vezes mais lento, sempre avança metade da
distância coberta pelo homem em cada instante. Sua vantagem cai sempre, mas
nunca deixa de haver uma minúscula diferença entre os corredores.
Como
Aquiles certamente venceria a tartaruga numa disputa real, esse paradoxo
provocou grande celeuma na Grécia antiga e até hoje é discutido. O mais
curioso, porém, é que a corrida simboliza uma soma infinita. Suas parcelas são
as distâncias percorridas por Aquiles a cada instante, começando com um
quarteirão, depois meio quarteirão e assim por diante. A conta fica assim:
1+1/2+1/4+1/8+1/16... Embora pareça impossível fazer tal soma, pois ela nunca
termina — sempre se pode acrescentar mais uma parcela ao seu final —, os gregos
já sabiam que seu resultado era simplesmente 2.
Ou
seja, Aquiles ultrapassaria a tartaruga exatamente ao fim do segundo quarteirão
— como, de resto, prevêem as equações da Física e qualquer teste prático pode
comprovar. Isso de modo algum significou a derrota para Zenão, pois a soma é
feita por meio de um artifício e não se pode dizer que seu resultado ajuda, de
alguma maneira, a compreender o infinito. Mas ele abriu um caminho que os
gregos posteriormente trilharam com sucesso. O grande nome nesse campo foi
Eudoxo de Cnido (c.400-c.350 a.C.). Quase nada se sabe sobre esse matemático,
mas ele parece ter feito muitas das descobertas que celebrizariam o seu povo.
É
quase certo, por exemplo, que ele tenha realizado boa parte da obra que mais
tarde Euclides de Alexandria (c.300 a.C) enfeixou num livro monumental, chamado
Elementos. Também se acredita que ele seja autor do chamado método de exaustão,
que se tornou a raiz da Análise moderna. Fundamental na Matemática moderna, a Análise
lida justamente com os problemas que envolvem o infinito. O método de Eudoxo
consistia em colocar figuras dentro de figuras. Por exemplo, um triângulo,
depois dois triângulos menores, depois três ainda menores — e assim por diante,
todos dentro de uma parábola. Dessa maneira, é possivel usar figuras conhecidas
— os triângulos — para calcular uma área desconhecida, a da parábola.
Arquimedes
de Siracusa (c.290-c.212 a.C.) foi o primeiro a usar o método de exaustão com
rigor, 250 anos antes da era cristã. Conseguiu, assim, montar uma soma
infinita: 1+ 1/4+1/16+... (Como se vê, não muito diferente da conta que
resolveu a corrida de Zenão.) E, com ela, Arquimedes calculou a área da
parábola, uma das mais importantes curvas geométricas. Tanto engenho mostraram
os gregos que nos milênios seguintes pouco se acrescentou a seu trabalho, nesse
campo. Para realmente avançar, os matemáticos precisavam descobrir fórmulas
gerais — por exemplo, para calcular a área de qualquer figura. E não só de
figuras especiais, como o círculo ou a parábola, dominadas no passado por
artifícios sutis, que não são úteis em outros casos.
Esse
passo começou a ser dado apenas na época do Renascimento e seria completado,
por volta de 1700, pelo inglês Isaac Newton (1643-1727) e o alemão Wilhelm
Leibniz (1646-1716). Com o cálculo infinitesimal, inventado por eles, surgiram
fórmulas para o cálculo das mais variadas áreas e volumes, assim como o
comprimento de curvas , entre muitas outras coisas. Em todos esses problemas,
porém, persistiam os velhos fantasmas do passado, especialmente as seqüências
que nunca terminam, do tipo 1+1/2+1/4+1/8+1/16... Os matemáticos estavam
avançando, mas às cegas, por assim dizer, como muitas vezes acontece em
ciência.
Era
como se soubessem somar seqüências infinitas de números, por exemplo, sem
compreender muito bem o que estavam fazendo. O alemão Friedrich Gauss,
considerado o príncipe dos matemáticos, expressou as dúvidas dessa época,
banindo da Matemática a própria idéia do infinito. O clima só ficou menos tenso
depois que o francês Augustin Louis Cauchy (1789-1857), criou o conceito de
limite, um meio de dar significado a uma seqüência infinita. Segundo a idéia de
Cauchy, não era certo dizer que 1+1/2+1/4+... era igual a 2, mas sim que essa
soma tende a 2, sem nunca chegar a ele.
E
o mais importante, dizia Cauchy, é que sempre será possível dizer quanto falta
para chegar a 2. Basta fazer uma soma finita: por exemplo, 1+1/2+1/4 dá 1,75 e
falta 0,25 para 2. Como num passe de mágica, então, o fantasma foi afastado, pois
todas as operações, de fato, são feitas com quantidades finitas. Em lugar de
dizer, por exemplo, que uma seqüência é infinita, se diz que é tão longa quanto
se queira — quanto mais longa, menor a diferença com relação a 2, que pode ser
tornada tão pequena quanto se queira. Pode parecer pouca coisa, mas, em
Matemática, o rigor é crucial, o que significa eliminar toda e qualquer
ambigüidade. E isso se obteve a partir do trabalho de Cauchy.
A
idéia de limite é ainda a base da visão moderna sobre o cálculo supe-rior e de
outros temas ligados à Análise. Desde então essa idéia vem sendo aprimorada,
inclusive por meio das teorias de Cantor. Pode parecer que os números infinitos
não têm nada a ver com o resto da Matemática, mas não é assim. Afinal, os
números estão por todo lado. Vale a pena acompanhar, por exemplo, a comparação
feita por Cantor entre reta e plano (que se podem imaginar como uma linha e uma
folha de papel, respectivamente). A dúvida é a seguinte: se tanto a reta quanto
o plano são conjuntos de pontos, qual deles tem mais pontos? À primeira vista,
é a reta, pois é só uma fila indiana, um ponto atrás do outro. Já o plano, que
contém infinitas retas, faz pensar numa figura muito maior.
Mas
ambos têm o mesmo número de pontos, por mais que o senso comum afirme o
contrário. Novamente, a prova dos noves consiste em casar os elementos dos
conjuntos: cada ponto da reta com cada ponto do plano. E Cantor mostrou como
fazer isso, também nesse caso, verificando que não havia pontos solteiros,
fosse na reta ou no plano. (Naturalmente, “emparelhar” e “casar” são termos
leigos; tecnicamente, se diz que há uma relação “de um para um” quando há um
elemento de um conjunto para cada elemento do outro. O casamento é perfeito.
Caso contrário, a relação é de “um para muitos”).
Para
finalizar, é preciso dizer que a teoria de Cantor não resolveu por completo os
problemas básicos sobre o infinito. Para citar um único exemplo, talvez o mais
importante, ele foi incapaz de dizer qual seria o número dos números reais —
que ele havia provado serem em maior quantidade que os inteiros. Mas em que
proporção? Se o número dos inteiros é álefe-zero, qual será o número infinito
dos números reais? O matemático alemão David Hilbert (1862-1943), homenageado
como o maior deste século, pensou ter provado que seria 2 elevado a álefe-zero.
Cantor, pessoalmente, se inclinava fortemente para esse resultado, mas a prova
não se sustentou.
Mas
é claro que seria injusto, por isso, esquecer as notáveis contribuições que ele
deu a inúmeras partes da Matemática. E, acima de tudo, a criatividade que
demonstrou em tratar da mais difícil entidade do raciocínio, o infinito. O
filósofo francês Blaise Pascal (1623-1662) definiu sua atitude dizendo: “O
eterno silêncio desses espaços infinitos me enche de pânico”. Mas a réplica
entusiasmada de Hilbert parece mais apropriada ao sentimento moderno: “Que
ninguém seja capaz de nos tirar do paraíso que Cantor criou para nós”.
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