segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

O HOMEM QUE COLOCOU O INFINITO NO BOLSO

            Georg Cantor e o álefe-zero: O homem que colocou o infinito no bolso
Flávio Dieguez
Desde que o homem aprendeu a pensar, poucos conceitos perturbaram tanto o seu espírito quanto o infinito. Um exemplo simples são os números inteiros: 1, 2, 3, 4, 5... e assim por diante. A seqüência nunca termina e não se pode imaginar um número que seja maior que todos os outros — era o que se pensava até o final do século XIX. O fato, porém, é que há números ainda maiores, como se além de um infinito houvesse outros. Esse paradoxo abalou o pensamento matemático e surpreendeu seu próprio autor, o matemático Georg Cantor (1845-1918). Filho de dinamarqueses, nascido na Rússia e radicado na Alemanha, sua pátria por adoção, Cantor era bastante conservador, dizem os historiadores.
                                                                        
Muito ligado à religião e de boa índole (chegou a matricular-se num curso de engenharia para satisfazer o pai), não tinha vocação para radical. Num único episódio fugiu à regra: quando propôs, na juventude, que a Igreja abandonasse o dogma da imaculada concepção (pelo qual a mãe de Cristo teria engravidado, continuando virgem). Assim, quando foi atacado por sua descoberta, defendeu-se dizendo sinceramente que fizera tudo para evitá-lo. “Apenas, não vejo como fugir dela”, acrescentou. E estava certo. Seu método, claro como água, consistiu em comparar a lista dos números inteiros com as de outros números. Por exemplo, como os existentes entre 0 e 1, tais como 0,014828910... ou........... 0,999999273... E a comparação era feita como quem vistoria uma sala de cinema: se não há cadeiras vazias e ninguém está de pé, é certo que o número de cadeiras é igual ao de pessoas. Caso contrário, será maior o número do que sobrar, cadeiras ou pessoas.
Com essa idéia em mente, Cantor emparelhou os números inteiros com os números menores que 1 e constatou: depois de esgotar a lista dos inteiros, ainda havia menores que 1 a emparelhar. Concluiu que o número desses últimos — apenas entre 0 e 1 — era maior que o infinito número dos inteiros. Nem havia nome para tal quantidade, e coube a Cantor batizá-la. Chamou de álefe-zero ao conjunto de todos os inteiros — o “menor” dos infinitos. Vinha depois o álefe-zero mais 1, e por aí adiante, numa inimaginável hierarquia de infinitos. O mundo ficou pasmo, mas, como quase sempre acontece, grande parte do problema era simples falta de costume com uma idéia nova.
E, depois de assimilados, os métodos cantorianos se mostraram perfeitamente práticos e muito úteis. Apenas a título de ilustração, eles serviram de base à recente teoria dos fractais, que representa um notável avanço no conceito de dimensão. Uma casa tem dimensão 3 porque tem altura, largura e comprimento, e uma folha tem dimensão 2 porque só tem largura e comprimento. Mas há objetos difíceis de classificar — como os alvéolos pulmonares. Por serem ramificados como uma árvore, se diz que sua dimensão é fracionária — alguma coisa entre uma área e um volume — e é denotada por algum número entre 2 e 3. Isso, por si só, mostra que Cantor ajudou a ampliar os cálculos que a Matemática é capaz de fazer.
Ainda mais importante que esse lado prático, porém, foi uma mudança de fundo na maneira de ver os números. Curiosamente, o melhor caminho para entender a visão moderna é relembrar como os números eram usados na Pré-história — e ainda hoje são usados por pastores nômades que aprenderam a contar com seus ancestrais. Como não sabem dizer quantos animais têm, os pastores colocam pedrinhas numa sacola, uma para cada vaca que sai do curral. Assim, sabem que têm tantos animais quantas pedras há na sacola. Ou seja, quase se pode dizer que a sacola de pedras é o número — e que esses povos carregam seus números no bolso, em lugar de decorá-los.
Esse tosco sistema serve apenas para manter o gado sob controle. Mas é mais ou menos isso o que a Matemática moderna entende por número: uma espécie de comparação entre dois conjuntos — o conjunto de pedras e o de vacas, ou de qualquer outra coisa. É fácil perceber que, para contar os infinitos números entre 0 e 1, Cantor repetiu o procedimento daqueles pastores: a diferença básica é que, como pedras, ele usou os números inteiros. Sua sacola era infinita e suas pedras, abstratas, mas seu objetivo, desde o início, era compreender os números comuns. Ou, pelo menos, uma categoria rebelde de números comuns.
O exemplo clássico, conhecido desde a Antigüidade, é a raiz de 2. À primeira vista, é um número trivial, para todos os efeitos igual a 1,41. O problema é que 1,41 ao quadrado dá 1,9881 — e não 2, como deveria acontecer se fosse a raiz procurada. A resposta exata, na verdade, nunca poderia ser escrita, e o mesmo vale para a maior parte dos números entre 0 e 1 . Pelo simples motivo de que raiz de 2 tem infinitos algarismos. Existem fórmulas para se calcularem quantos algarismos se queiram. Por exemplo, com dez casas decimais, o número seria 1,4142135623. Mesmo assim, seu quadrado é 1,9999999997. Ainda não alcança o alvo, como se raiz de 2 fosse uma construção eternamente inacabada.
Esse fato perturbou profundamente os gregos antigos, que conheciam bem as frações, e muitas delas com infinitos algarismos, como 0,66666666... A diferença é que esse número pode ser abreviado na forma de uma razão: ele vale exatamente 2/3. No entanto, não há razão capaz de simbolizar a raiz de 2 e outros números. Daí porque foram chamados “irracionais”, no século V a.C. (hoje, frações, inteiros e irracionais são todos englobados num só conjunto, o dos números reais). Não por acaso, por volta daquela época, o infinito começou a revelar suas arapucas aos filósofos e matemáticos. Uma das mais ardilosas foi montada pelo sábio Zenão (c.495-c.430 a.C.), morador da ilha de Eléia, no Mediterrâneo, que imaginou uma corrida fantástica entre Aquiles, lendário herói da Grécia, e uma lerda tartaruga.
Zenão mostrou que, se Aquiles desse uma vantagem à tartaruga, não poderia alcançá-la, por mais que corresse. O herói poderia ser, por exemplo, duas vezes mais rápido, e a vantagem, de um quarteirão. Assim, quando Aquiles percorresse o quarteirão, a tartaruga teria andado mais meio quarteirão. Continuaria à frente, portanto. Num segundo instante, Aquiles percorreria esse meio quarteirão, mas a tartaruga já teria avançado mais um quarto de quarteirão. Em resumo, como o animal é duas vezes mais lento, sempre avança metade da distância coberta pelo homem em cada instante. Sua vantagem cai sempre, mas nunca deixa de haver uma minúscula diferença entre os corredores.
Como Aquiles certamente venceria a tartaruga numa disputa real, esse paradoxo provocou grande celeuma na Grécia antiga e até hoje é discutido. O mais curioso, porém, é que a corrida simboliza uma soma infinita. Suas parcelas são as distâncias percorridas por Aquiles a cada instante, começando com um quarteirão, depois meio quarteirão e assim por diante. A conta fica assim: 1+1/2+1/4+1/8+1/16... Embora pareça impossível fazer tal soma, pois ela nunca termina — sempre se pode acrescentar mais uma parcela ao seu final —, os gregos já sabiam que seu resultado era simplesmente 2.
Ou seja, Aquiles ultrapassaria a tartaruga exatamente ao fim do segundo quarteirão — como, de resto, prevêem as equações da Física e qualquer teste prático pode comprovar. Isso de modo algum significou a derrota para Zenão, pois a soma é feita por meio de um artifício e não se pode dizer que seu resultado ajuda, de alguma maneira, a compreender o infinito. Mas ele abriu um caminho que os gregos posteriormente trilharam com sucesso. O grande nome nesse campo foi Eudoxo de Cnido (c.400-c.350 a.C.). Quase nada se sabe sobre esse matemático, mas ele parece ter feito muitas das descobertas que celebrizariam o seu povo.
É quase certo, por exemplo, que ele tenha realizado boa parte da obra que mais tarde Euclides de Alexandria (c.300 a.C) enfeixou num livro monumental, chamado Elementos. Também se acredita que ele seja autor do chamado método de exaustão, que se tornou a raiz da Análise moderna. Fundamental na Matemática moderna, a Análise lida justamente com os problemas que envolvem o infinito. O método de Eudoxo consistia em colocar figuras dentro de figuras. Por exemplo, um triângulo, depois dois triângulos menores, depois três ainda menores — e assim por diante, todos dentro de uma parábola. Dessa maneira, é possivel usar figuras conhecidas — os triângulos — para calcular uma área desconhecida, a da parábola.
Arquimedes de Siracusa (c.290-c.212 a.C.) foi o primeiro a usar o método de exaustão com rigor, 250 anos antes da era cristã. Conseguiu, assim, montar uma soma infinita: 1+ 1/4+1/16+... (Como se vê, não muito diferente da conta que resolveu a corrida de Zenão.) E, com ela, Arquimedes calculou a área da parábola, uma das mais importantes curvas geométricas. Tanto engenho mostraram os gregos que nos milênios seguintes pouco se acrescentou a seu trabalho, nesse campo. Para realmente avançar, os matemáticos precisavam descobrir fórmulas gerais — por exemplo, para calcular a área de qualquer figura. E não só de figuras especiais, como o círculo ou a parábola, dominadas no passado por artifícios sutis, que não são úteis em outros casos.
Esse passo começou a ser dado apenas na época do Renascimento e seria completado, por volta de 1700, pelo inglês Isaac Newton (1643-1727) e o alemão Wilhelm Leibniz (1646-1716). Com o cálculo infinitesimal, inventado por eles, surgiram fórmulas para o cálculo das mais variadas áreas e volumes, assim como o comprimento de curvas , entre muitas outras coisas. Em todos esses problemas, porém, persistiam os velhos fantasmas do passado, especialmente as seqüências que nunca terminam, do tipo 1+1/2+1/4+1/8+1/16... Os matemáticos estavam avançando, mas às cegas, por assim dizer, como muitas vezes acontece em ciência.
Era como se soubessem somar seqüências infinitas de números, por exemplo, sem compreender muito bem o que estavam fazendo. O alemão Friedrich Gauss, considerado o príncipe dos matemáticos, expressou as dúvidas dessa época, banindo da Matemática a própria idéia do infinito. O clima só ficou menos tenso depois que o francês Augustin Louis Cauchy (1789-1857), criou o conceito de limite, um meio de dar significado a uma seqüência infinita. Segundo a idéia de Cauchy, não era certo dizer que 1+1/2+1/4+... era igual a 2, mas sim que essa soma tende a 2, sem nunca chegar a ele.
E o mais importante, dizia Cauchy, é que sempre será possível dizer quanto falta para chegar a 2. Basta fazer uma soma finita: por exemplo, 1+1/2+1/4 dá 1,75 e falta 0,25 para 2. Como num passe de mágica, então, o fantasma foi afastado, pois todas as operações, de fato, são feitas com quantidades finitas. Em lugar de dizer, por exemplo, que uma seqüência é infinita, se diz que é tão longa quanto se queira — quanto mais longa, menor a diferença com relação a 2, que pode ser tornada tão pequena quanto se queira. Pode parecer pouca coisa, mas, em Matemática, o rigor é crucial, o que significa eliminar toda e qualquer ambigüidade. E isso se obteve a partir do trabalho de Cauchy.
A idéia de limite é ainda a base da visão moderna sobre o cálculo supe-rior e de outros temas ligados à Análise. Desde então essa idéia vem sendo aprimorada, inclusive por meio das teorias de Cantor. Pode parecer que os números infinitos não têm nada a ver com o resto da Matemática, mas não é assim. Afinal, os números estão por todo lado. Vale a pena acompanhar, por exemplo, a comparação feita por Cantor entre reta e plano (que se podem imaginar como uma linha e uma folha de papel, respectivamente). A dúvida é a seguinte: se tanto a reta quanto o plano são conjuntos de pontos, qual deles tem mais pontos? À primeira vista, é a reta, pois é só uma fila indiana, um ponto atrás do outro. Já o plano, que contém infinitas retas, faz pensar numa figura muito maior.
Mas ambos têm o mesmo número de pontos, por mais que o senso comum afirme o contrário. Novamente, a prova dos noves consiste em casar os elementos dos conjuntos: cada ponto da reta com cada ponto do plano. E Cantor mostrou como fazer isso, também nesse caso, verificando que não havia pontos solteiros, fosse na reta ou no plano. (Naturalmente, “emparelhar” e “casar” são termos leigos; tecnicamente, se diz que há uma relação “de um para um” quando há um elemento de um conjunto para cada elemento do outro. O casamento é perfeito. Caso contrário, a relação é de “um para muitos”).
Para finalizar, é preciso dizer que a teoria de Cantor não resolveu por completo os problemas básicos sobre o infinito. Para citar um único exemplo, talvez o mais importante, ele foi incapaz de dizer qual seria o número dos números reais — que ele havia provado serem em maior quantidade que os inteiros. Mas em que proporção? Se o número dos inteiros é álefe-zero, qual será o número infinito dos números reais? O matemático alemão David Hilbert (1862-1943), homenageado como o maior deste século, pensou ter provado que seria 2 elevado a álefe-zero. Cantor, pessoalmente, se inclinava fortemente para esse resultado, mas a prova não se sustentou.
Mas é claro que seria injusto, por isso, esquecer as notáveis contribuições que ele deu a inúmeras partes da Matemática. E, acima de tudo, a criatividade que demonstrou em tratar da mais difícil entidade do raciocínio, o infinito. O filósofo francês Blaise Pascal (1623-1662) definiu sua atitude dizendo: “O eterno silêncio desses espaços infinitos me enche de pânico”. Mas a réplica entusiasmada de Hilbert parece mais apropriada ao sentimento moderno: “Que ninguém seja capaz de nos tirar do paraíso que Cantor criou para nós”.

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